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Dentro do quadro de oposição entre visível e invisível é que se afirma a função do objeto da qual deriva o já aludido fascínio que ele pode exercer
ULPIANO, 1980
Atividade crucial no processo museológico que está prevista no Plano Museológico do Museu Casa de Portinari (MUSEU CASA DE PORTINARI, 2022), a pesquisa é o combustível que alimenta a engrenagem institucional, fomentando os conteúdos que serão lapidados por todos os demais setores do museu. A pesquisa de acervo é essencial para compreensão da coleção e para criação de uma identidade museológica, conectando o público visitante ao patrimônio preservado e divulgado pelo museu.
Na Casa de Portinari, cerca de 12% da coleção é composta por objetos de uso pessoal do artista. Entre as peças do vestuário, a pesquisa de um exemplar singular merece destaque: o chapéu de modelo denominado “Fédora” – de feltro cinza, copa cilíndrica, com forro de tecido branco e fita bege entre a copa e a aba – foi produzido no Brasil entre as décadas de 1930 e 1940.
Com aba macia e coroa encurvada, leva esse nome pelo título do espetáculo Fédora, do dramaturgo Victorien Sardou, apresentado nos Estados Unidos em 1889; durante o espetáculo, a dançarina Sarah Bemhardt usava um chapéu semelhante e, sendo o modelo de chapéu atraente para a época, o movimento pelos direitos das mulheres começou a utilizá-lo como um símbolo. Depois que o Príncipe de Gales, Edward começou a usá-lo, por volta de 1924, o chapéu se popularizou entre os homens por ser considerado de alto estilo e por sua capacidade de proteger a cabeça do vento e da chuva. A popularidade foi tanta, que o objeto desbancou até mesmo o modelo Homburg, um dos mais famosos tipos de chapéus.
Tanto no Brasil como na França, esse modelo de chapéu ficou conhecido como “Borsalino”, mesmo nome da fábrica italiana de chapéus que reivindica a criação da peça. Não são poucos os exemplos de artistas que usaram o chapéu em obras famosas do cinema, sobretudo nos anos 40, quando o uso do chapéu era associado aos estereótipos de gangsters e detetives.
No Museu Casa de Portinari, este objeto da coleção, assim como tantos outros, foi doado ao Governo do Estado de São Paulo, na pessoa de Antônio Portinari (ou Zé Portinari, como era carinhosamente conhecido o irmão do artista), representando a família Portinari. No processo de documentação museológica, o objeto encontra-se tombado sob o número 00135, com numeração de patrimônio, 010-00279, na folha 82 do Livro Tombo.
Na parte interna do chapéu de Portinari, vê-se as inscrições:
– Casa Palheiros / Especial / Rua da Carioca, 24 / Rio: o que faz referência à antiga fábrica e loja de chapéus e bengalas, localizada no centro do Rio de Janeiro. Essa inscrição do fabricante na parte interna do chapéu praticamente sela a origem do mesmo, o qual, possivelmente, foi adquirido pelo próprio artista, apreciador de chapéus que era.
Depois de ter voltado da Europa, em 1931 o artista residiu em alguns endereços no Rio de Janeiro. Apesar de não ser conclusivo, o endereço mais próximo da loja seria o de uma pensão na Rua Senador Dantas. No entanto, esse foi, possivelmente, o segundo endereço de Portinari, em meados do início da década de 30, o que faria com que o objeto fosse praticamente centenário. Os demais endereços, distanciavam consideravelmente da loja na Rua da Carioca.
O que se sabe sobre a Casa Palheiros, além da localização em área privilegiada para o comércio, é que a loja era bastante tradicional e centenária e que foi completamente destruída em um incêndio na noite do dia 20 de janeiro de 1978.
Este exemplar não é o único modelo que fora utilizado pelo artista, seu gosto constante pela peça de vestuário pode ser observado através de algumas imagens do artista trajando outros tantos modelos. Nesta época o uso de chapéus fazia parte do cotidiano de homens e mulheres de diferentes classes sociais; neste sentido, considerando-se a vasta temática e assuntos abordados na produção plástica e poética do artista, com enfoque capital ao trabalho do homem e sua essência, aos usos e costumes, há incontáveis referências ao uso de chapéus sejam nos trabalhadores (no campo, na lavoura de café, na pesca) ou dos músicos, dos cangaceiros, dos caipiras, bandeirantes, rabino, entre outros.
Neste cenário merece destaque uma série especial “de se tirar o chapéu”. Trata-se da série “Meninos de Brodowski”, “feitos com uma caligrafia de facilidade e firmeza incomparáveis” (Bento, 1980), os quais o artista pôde retratar a simplicidade dos garotos de sua terra natal. O que distingue esses trabalhos são os relatos dos próprios meninos que pousaram como modelos usando o chapéu do próprio pintor.
Não foram só as pinturas e desenhos que retrataram homens, mulheres e crianças em seus chapéus. Também há menções interessantes nas poesias e no diário do artista, os quais foram publicados postumamente:
“Eu lidava mais com os
Bichos, as árvores, as águas,
O céu estrelado e o vento…
Também com a minha botininha e meu
Chapéu: existirão ainda?”
“Meus chapéus, minhas camisas,
Onde estarão?”
“Tive muitos chapéus,
Nunca mais os vi, onde estarão?
…Haverá nos ventos algum ladrão?”
Esse é o poder da pesquisa museológica: levantar informações antes desconhecidas para elucidar a importância de um item dentro de uma coleção. No museu, cada objeto é único e pode contar uma história singular que sempre irá se relacionar, de alguma maneira, com o contexto histórico da sociedade em que a coleção museológica se insere.
REFERÊNCIAS:
MUSEU CASA DE PORTINARI. Plano de Trabalho 2024. In: 3º Termo de Aditamento ao Contrato de Gestão nº 04/2021. Brodowski: ACAM Portinari, 2024. Disponível em: <https://www.acamportinari.org/wp-content/s/03-TA-ACAMP-CG-04-2021.pdf> o em: 20 maio. 2024.
MUSEU CASA DE PORTINARI. Plano Museológico. ACAM Portinari: Brodowski, 2022. Disponível em: <https://www.acamportinari.org/wpcontent/s/M_plano_museologico_2018_rev_2020_2021-Completo.pdf> o em 24 maio. 2024.
MUSEU CASA DE PORTINARI. Programa de Gestão de Acervos. In: Contrato de Gestão nº 04/2021. ACAM Portinari: Brodowski, 2021. Disponível em: <https://www.acamportinari.org/wp-content/s/1.-Contrato-de-Gestao_04_2021_e_Anexos_I_a_V.pdf> o em: 25 mai. 2024.
FILHO, Mário. A infância de Portinari. Edições Bloch: Rio de Janeiro, 1966.
FABBRI, Angelica; MACHADO, Cecília. Informatização dos museus como ferramenta de o. In: ACAM PORTINARI. Documentação e conservação de acervos museológicos: diretrizes. Brodowski: Associação Cultura de Amigos do Museu Casa de Portinari; São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 2010.